“É um fantasma na família”, diz paciente com amiloidose hereditária

“É um fantasma na família”, diz paciente com amiloidose hereditária

Aos 12 anos de idade, Fábio Figueiredo de Almeida viu o pai começar a manifestar sintomas de uma doença incurável. Apesar de a condição estar presente na família há muitas décadas, a amiloidose hereditária por transtirretina (ATTRh) era assunto proibido entre os parentes.

 

“A doença é um fantasma na família. Como ela significava uma sentença de morte, era tabu entre os meus parentes”, conta.

 

A doença genética do pai de Fábio logo se agravou: o que antes eram dores fortes nas pernas e cansaço progrediu para perda da sensibilidade dos membros inferiores, dificuldade para se movimentar e diarreias constantes e intensas.

“Meu pai tentou ao máximo esconder e negar os sintomas de amiloidose. Era uma sentença de morte. Ele tinha quatro filhos pequenos e sustentava a casa, então foi difícil para ele aceitar o que estava acontecendo, apesar de saber do que se tratava”, relembra o técnico em eletrônica aposentado.

Para Fábio, a condição vivenciada pela família foi apavorante e afetou muito a convivência de todos os familiares. Como ele era o mais velho de quatro irmãos, logo tornou-se o responsável pela casa, especialmente em relação à administração das finanças, já que o pai perdeu o emprego e as garantias trabalhistas por causa da doença.

 

“Ele urrava de dor, ficou acamado e com isso vieram mais complicações. Ele começou a ter muitas feridas e alguns dias ele passou inteiros no banheiro, a ponto de comer sentado no vaso sanitário”, conta.

Quem compartilhava as tarefas da casa com Fábio era o irmão dele, Marcelo. Quando o pai começou a definhar, foi ele quem ajudou a mãe a carregar o patriarca pela casa, levando-o ao banheiro, cuidando das feridas e o alimentando.

O pai de Fábio morreu 10 anos mais tarde, aos 47 anos. Pouco depois, o técnico eletrônico começou a realizar exames para saber se ele também tinha a mutação genética responsável pela ATTRh. Diante do resultado positivo, ficou alerta aos sintomas, que poderiam começar a se manifestar a qualquer momento.

 

A causa da amiloidose é genética, por isso a doença é como um "fantasma" para a famíliaÁlbum de família

Fábio tem amiloidose hereditária e reivindica agilidade na aprovação de medicamentos para tratar a condição

 

Fábio com o irmão Marcelo, que também teve a doençaÁlbum de família

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Fábio e os irmãos na infância. Nesta época, o pai dele começou a apresentar os primeiros sintomas da doençaÁlbum de família

 

A causa da amiloidose é genética, por isso a doença é como um "fantasma" para a famíliaÁlbum de família

 

Fábio tem amiloidose hereditária e reivindica agilidade na aprovação de medicamentos para tratar a condição

 

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Diagnóstico de Fábio

Os primeiros sinais da doença apareceram quando Fábio tinha pouco mais de 30 anos. Eles começaram com dores nas pernas, que o levaram a procurar o diagnóstico de amiloidose hereditária no gene TTR.

O técnico aposentado relata que muitos médicos tentaram “desconversar” a relação do sintoma com a amiloidose. Outros, no entanto, não conseguiram fechar o diagnóstico por falta de conhecimento.

Mas ele não desanimou e continuou a procurar estudos e profissionais de saúde. Meses mais tarde, Fábio realizou uma consulta com a neurofisiologista Márcia Waddington Cruz, no Rio de Janeiro. A médica é presidente da Associação Brasileira de Amiloidose Hereditária Associada à Transtirretina (Abpar) e fechou o diagnóstico com rapidez.

“Quando a amiloidose hereditária se manifesta, ela é muito rápida. O paciente perde qualidade de vida muito rapidamente. Eu não queria passar pela mesma situação do meu pai, então fui pesquisando e descobri que na Europa já tinha um medicamento para tratar”, lembra.

Início do tratamento

Fábio entrou com uma liminar na Justiça para conseguir importar o medicamento Tafamidis, um comprimido diário para estabilizar a TTR anormal e evitar a progressão da doença. Na época, cada caixa de comprimidos, que dura cerca de um mês, custava cerca de R$ 80 mil.

Além do estresse e ansiedade vividos com os eventuais atrasos da chegada do remédio, o técnico em eletrônica se deparou com o início dos sintomas de ATTRh no irmão.

 

“O Marcelo é cinco anos mais novo que eu. Isso deixou todos da família preocupados. Assim como o meu pai, ele tentou esconder e negar os sintomas, mas eu o convenci a participar de um estudo comigo para testar um novo medicamento. A gente arriscou”, revela.

Os irmãos participaram juntos de testes clínicos para o Inotersena, desenvolvido nos Estados Unidos. A droga é um silenciador de RNA, ou seja, impede a ativação da proteína transtirretina e regula a manifestação da amiloidose.

Infelizmente, tanto Fábio quanto Marcelo foram colocados no grupo que recebeu placebo. Os irmãos teriam que aguardar o término dos 15 meses de testes clínicos para receberem o medicamento real.

“Desconfiamos que era placebo quando não vimos melhora. Meu irmão passou do grau 1 para o grau 2, que é quando a pessoa não consegue mais andar sem apoio. Eu não piorei tanto, mas via as diferenças nos exames”, conta.

Inotersena

Após o período de testes, Fábio e Marcelo começaram a tomar o medicamento. A amiloidose não continuou a agravar, mas os irmãos ficaram com as sequelas causadas pela interrupção do tratamento inicial.

“Está estabilizado, mas sinto dores terríveis. Também perdi a sensibilidade das pernas e tenho diarreia. É uma doença rara, mas que pode ser estabilizada e regulada, como a diabetes. Mas precisa ser diagnosticada e tratada precocemente para garantir qualidade de vida. Por causa da amiloidose, eu tive que me aposentar, o que fez minha renda diminuir bastante”, desabafa.

Fábio já toma a medicação há seis anos e nunca teve efeitos colaterais. Mas ele afirma que existe um tratamento mais seguro e permanente contra a amiloidose: uma tecnologia de terapia gênica que altera o DNA do paciente e inibe a fabricação da proteína TTR. O procedimento é semelhante ao Zolgensma, incorporado ao SUS nesta semana para o tipo 1 da atrofia muscular espinhal (AME).

Hoje, o técnico aposentado tem 47 anos, idade que o pai tinha quando morreu. Ele já foi presidente da Associação Brasileira de Paramiloidose e reivindica a aprovação de novos medicamentos e agilidade do diagnóstico de ATTRh. Fábio também ressalta que pessoas com o gene da doença deveriam ter melhor acesso a técnicas de reprodução, como a fertilização in vitro.

“Eu nunca quis ter filhos porque não queria que eles passassem pelo que eu passei com o meu pai, e ainda vivo todos os dias. Mas meu irmão e uma das minhas irmãs arriscaram a sorte. Eles escolheram ter filhos mesmo conhecendo os riscos, o que é direito deles”, comenta.

Amiloidose hereditária por transtirretina

De acordo com o neurologista Wilson Marques Junior, do Hospital das Clínicas da FMRP-USP, a ATTRh resulta de uma mutação no gene que codifica a proteína TTR, a transtirretina. Ela tem como função transportar a vitamina A e a tiroxina, o hormônio tireoidiano, e é uma proteína presente no sangue de pessoas normais.

“Quando a gente tem uma mutação nesse gene, existe uma alteração na estrutura da proteína em que ela passa a ter uma estrutura anormal e começa a se depositar nos tecidos, formando como se fosse uma substância amorfa, assemelhando-se a um chumaço de algodão. Ela vai se depositando nos tecidos e, na medida que se deposita, vai estragando-os”, ilustra o médico.

A condição é multissistêmica e progressiva, porque ainda não é sabido exatamente quando começa. Porém, depois que se manifesta clinicamente, os sintomas vão piorando rapidamente, destruindo mais tecidos e órgãos.

A ATTRh é uma doença genética autossômica dominante. Isso que significa que cada filho de uma pessoa afetada tem 50% de chance de herdar o gene. Mas tê-lo não significa necessariamente que a pessoa vai ter a amiloidose: ela pode ter o gene alterado e a condição nunca aparecer.

Inclusão do Inotersena no SUS

Em julho deste ano, a Conitec deu parecer negativo para a inclusão do Inotersena no Sistema Único de Saúde (SUS) e abriu uma consulta pública para ouvir a opinião da sociedade civil. Foram registradas mais de 400 contribuições favoráveis à incorporação do medicamento, mas ainda assim, a recomendação final do órgão foi negativa.

“Estamos falando de um medicamento de alto custo que precisa estar disponível no SUS. É uma doença letal. O tempo é crucial. São pessoas que estão em plena idade produtiva, que precisam se tratar para ter vida, manter a sua família, emprego e ter esperança de um futuro melhor”, comenta a presidente da Federação das Associações de Doenças Raras do Norte, Nordeste e Centro Oeste (Fedrann), Mônica Aderaldo.

Enquanto o tratamento não é incluído no SUS, pacientes e famílias como a de Fábio continuam a superar os desafios causados pela amiloidose e reivindicar melhor qualidade de vida para outros pacientes e familiares.